Eu tenho um filho.
Eu tenho um filho que aprendeu a andar esses dias. Tá que tá com a novidade e não quer mais saber de colo ou de dar a mão pra adulto nenhum.
Com sua nova habilidade, sai cambaleando pela casa batendo a cabeça nas quinas das mesas, levando tombos de cara no chão e chorando muito. Vive com galos e arranhões. Quando quer fugir de mim é pior. O cara não sabe correr. Sabe menos ainda como fazer uma curva durante uma fuga e acaba, sempre, metendo a cara nas batentes das portas. Dói só de olhar. Também dói olhar minha sobrinha desastrada que insiste em subir as escadas saltitando e SEMPRE escorrega e bate a canela na quina dos dagraus. Vocês se lembram da dor que uma queda dessas produz?
Analisando o universo infantil, cheguei à conclusão de que os adultos sentem menos dor que as crianças. Principalmente adultos sedentários e pacíficos. Porque os adultos já sabem que têm que olhar por onde andam e evitar um choque da virilha com a quina de algum móvel. Também sabem que não se sobe escadas saltitando. É cansativo. Na verdade, adultos evitam escadas. Preferem usar o elevador.
Envolta por esses pensamentos, tentei me lembrar da última vez que senti uma dor comparável à essa que as crianças sentem todos os dias, várias vezes por dia.
Foi numa festa que eu não deveria ter ido, em Porto Alegre no ano de 2003. Estava voltando para casa depois de um show que a minha banda havia feito em alguma cidade da Grande Porto Alegre e resolvi dar uma espiada no bar de um amigo meu. Falei com o porteiro, que também era meu amigo e ele me disse que todos os meus amigos estavam lá dentro e que a festa estava bombando. O que pode te acontecer de ruim no meio de tantos amigos?
Entrei pagando o ingresso, porque em bar de amigo eu faço questão de pagar, e providenciei um drink antes de fazer a ronda da beijolança (que consiste em percorrer todos os aposentos do bar cumprimentando os amigos com beijinhos). Festa boa, talvez cheia demais, mas o clima tava leve na medida do possível, pois dentro de bar nunca há leveza total.
Fui falar com um amigo que estava parado no fim do corredor conversando com um cara que eu nunca tinha visto. Era um gordo que devia ter seus 50 anos, vestido como aqueles tiozinhos que passam o dia no bar e tomam banho uma vez por semana. Beijinho no amigo, como é que tu tá, cadê a fulana e eis que sinto uma mão peluda por baixo da minha saia. O velho nojento fez um movimento rápido com o dedão, que subiu pela minha bunda e entrou na minha calcinha.
Horrorizada empurrei o velho pra trás e disse: "Eu não sei quem você é e isso foi nojen..."
Antes que eu pudesse terminar a frase, vi uma mão grande e fechada vindo na direção do meu rosto. O soco pegou no lado esquerdo da minha boca e minha cabeça foi jogada para trás, indo se encontrar com a quina da parede. Meio tonta, mas ainda de pé, abri meus olhos para ver meu amigo que estava com o cara gritando desesperado "Por que tu fez isso?, por que tu fez isso?" Ele gritava tão histericamente que sua voz saía fina "por que tu fez isso?" E em seguida, vi a outra mão gorda do velho vindo em minha direção. Desta vez ele socou o lado direito da minha boca num gancho tão perfeito que levantou meus pés do chão. Aterrizei de costas no meio da pista e quando levantei minha cabeça pra tentar entender o que tinha acontecido, pude ver o velho no chão, cercado por uns 10 caras, todos amigos meus, que chutavam seu corpo, seu rosto, alguns até se abaixavam para socá-lo. Fui tirada da pista ainda em choque e o dono do bar veio me trazer um drink por conta da casa, saber se eu estava bem, pedir desculpas e essas coisas. Só não queria me deixar ir embora. "Ah, Velha, agora é que tu tem que ficar. Aproveitar a festa pra esquecer o que aconteceu. Bebida por minha conta!"
Depois soube que o cara foi tirado do meio da pancadaria pelo dono do bar pra evitar que ele fosse morto à pancadas. Foi carregado para frente de seu prédio. O dono do bar tocou o interfone e deixou ele lá. Soube também quem era esse cara. O tal do Tio Toni, de quem eu já havia ouvido falar inúmeras vezes: "Acabou o fumo, vamos passar lá no tio Toni pra pegar mais".
O Tio Toni era o trafi da região roqueira da Porto Alegre. Morava perto dos bares e atendia 24h exceto quando sua mulher estava menstruada. Diziam que a maconha era cara e minguada, mas chapava pra caralho. Também diziam que o pó era caro e minguado e não dava barato nenhum, mas quando o Bororó ia embora das festas, era o Tio Toni a última salvação da drogadição roqueira.
No dia seguinte ao ocorrido, o dono do bar foi à casa do Tio Toni avisá-lo que ele não podia mais entrar no bar. O velho não sabia porque tinha apanhado. Nem lembrava onde. E o dono do bar contou. Falou também que o povo do bairro ia boicotar ele, pois eram todos meus amigos. Depois que saiu da casa do tio Toni, ouviu a esposa do velho dando uma surra nele.
Eu, no dia seguinte, estava com a boca inchada e uma buceta aberta no meu couro cabeludo. Não vi o sangue correr na noite anterior, só sentia minha cabeça arder. Ia ser madrinha de casamento naquele dia e fiquei feliz em ver que minha boca inchou por igual. Ainda bem que ele me bateu nos dois lados. Até que ficou sexy. Menos mal.
Felizmente, essa foi a única dor física de que tenho recordação no meu passado recente. Se caí de bêbada, não doeu. Eu tava bêbada.
Olhando meu filho aprendendo a caminhar, sinto pena por toda a dor que ainda o espera no decorrer da sua infância e faço votos que, quando ele crescer, não se meta com nenhum tio Toni da vida, senão quebro ele de porrada.