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Egotrip dos infernos.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Eu tenho sangue nas mãos


Aos 7 anos, eu era uma menina rural e saudável.
Morava no interior de São Roque (SP), num lugarejo chamado Mailasqui. Meu pai cansou da vida paulistana e nos alugou uma chacrinha neste lugar pitoresco onde eu abria a tampa dos dedões dos pés semanalmente, fazia downhill de Brandani com meus irmãos, detonava um pé de mexirica em um quarto de hora e alimentava as vacas do vizinho com os abacates que caíam de um pé gigantesco ao lado da nossa garagem.
As vaquinhas já sabiam: quando estávamos pelos arredores da cerca, não precisariam procurar pasto. Era só chegar ali para serem entupidas de abacates maduros.
Eu era muito amiga das vacas do vizinho e das galinhas da minha mãe.
O dono das vacas era o João Vinagre, um produtor de vinho que tirava seu ganha pão da venda do leite das minhas amigas. Não sei porque ele tinha esse apelido, afinal, em São Roque, todo mundo fazia vinho ruim. Na época eu não bebia, mas anos depois tive a oportunidade de experimentar o vinho desta região que almejava o título de "Caxias de São Paulo" em vão.
Numa bela manhã de sol, enquanto esperava minhas primas de São Paulo aparecerem pra passar o dia com a gente, vi um abacate inteirinho caído ao lado da garagem. Fiquei pensando se uma vaca, grande como era, seria capaz de ingerir aquela fruta assim como estava, com caroço e tudo. Já haviam algumas vaquinhas perto da cerca esperando meu presente e eu escolhi a maior de todas para fazer a minha experiência.
Apontei a parte mais estreita do abacate em direção à sua boca e fiquei vendo ela enrolar a língua feito um liquidificador enquanto aquela bola verde ia sumindo dentro da sua boca. Ela ficou bem feliz, eu tenho certeza. Mas saiu de perto da cerca emitindo um som que parecia uma tosse (eu sei, vacas não tossem) como se estivesse engasgando. Fiquei observando ela caminhar na direção do estábulo sem tropeçar até que a perdi de vista. Logo depois, as visitas chegaram e eu me esqueci de perguntar para a vaca se ela tinha curtido comer um abacate inteiro.
No dia seguinte, estava andando de bicicleta em frente à minha casa e vi o João Vinagre subindo a estrada de terra. Fui de bici ao seu encontro e ele me falou:
"Bom dia, princesinha, era com você mesmo que eu queria falar."
"Bom dia seu João."
"Queria te dizer que as vacas adoram abacates, mas te peço para que preste atenção se eles não estão com caroço antes de oferecer para elas. Ontem uma das minhas vacas morreu engasgada."
Na hora eu gelei, mas ele logo foi dizendo: "Eu sei que você não fez por mal e por isso resolvi falar direto com você porque sei que seu pai é bravo. Só preste mais atenção da próxima vez, tá bom?"
"Tá, seu João."
Ele se virou e começou a descer a estrada em direção à sua casa e eu fiz o mesmo com a minha bicicleta. Fui pro meu quarto e fiquei pensando na pobre da vaquinha. Mas como o seu João Vinagre não contou nada para os meus pais, não teve bronca, não teve surra, não teve bafafá para que eu passasse a vida inteira me lembrando deste ocorrido. Por isso eu esqueci completamente.
Fui me lembrar disso anos depois, já beirando os 30, caminhando pelas ruas de Porto Alegre. A lembrança me veio do nada e só aí eu entendi a gravidade do ocorrido. Tipo, não era uma aranha, ou um escorpião, ou uma barata. Era uma vaca, umas 6 vezes maior do que eu. O ganha pão do seu João Vinagre.
Claro que eu matei a vaca sem querer, mas sabia, bem no fundo, que isso poderia acontecer. Fico pensando se não merecia ser punida por isso e se a gentileza do seu João não foi um ato meio absurdo e prejudicial para o desenvolvimento do meu caráter.
Mas a verdade é que mesmo sem ficar de castigo ou levar porrada por causa disso, mesmo tendo esquecido deste fato durante muitos anos, eu nunca mais matei vaca nenhuma.